Crônica de uma amizade assassinada

Hoje a lembrança dela me veio à memória. Novamente. A lembrança junto com uma forte sensação de cobrança, seguida de um sentimento de culpa. Por que agi como agi? Era criança quando isso aconteceu. Mas eu poderia não ter agido como agi. Eu tinha esse direito? Poderia ter feito isso?

Não sei. Assim como não sei, ao certo, quando nossa amizade começou. Só sei que ela estava lá no meu aniversário de cinco anos. E já tinha um tempinho que nos conhecíamos. Lembro da gente como se fosse hoje (ela, um outro garoto e eu) destruindo o bolo no fim da festa com os dedos indicadores. Minha mãe não gostou nada. Morávamos no mesmo bairro, há um quarteirão de distância. Num tempo em que as crianças ocupavam as ruas. Brincavam na pracinha e frequentavam as mesmas escolas públicas. Eu era um deles. Ela também. 

Caloi Dobravelzinha azul na vitrine de uma loja em Belo Horizonte/MG. Foto: Divulgação A Caloi Dobravelzinha bem parecida com a que tinha. Foto: Divulgação.

Não me lembro quando, mas ficamos amigos. Que período ruim aquela época da pré-escola. Ia de perua escolar para uma particular católica. Às vezes fazia xixi na calça. A professora era extremamente mal educada. Frequentei esta por dois meses. Um verdadeiro transtorno. Um dia me recusei a entrar na perua. Saí correndo e me escondi embaixo da cama. Meus pais me tiraram de lá e me colocaram em outra perto de casa. Ela também estudava lá. Será que foi lá que nos conhecemos? Ela foi meu par na festa junina, ainda na década 70. Quando chegou a idade do primário, íamos à escola juntos, às vezes com outras crianças. Íamos também ao ginásio municipal, que fazia parte da faculdade de educação física, que oferecia aulas gratuitas de várias modalidades. Educação física, natação, judô, tênis, futebol, etc. Oferecia também capoeira. O pai dela era um hábil praticante. Ainda é. Chegou a lecionar lá, mas foi demitido por não ter ensino superior. Nós íamos juntos para a aula às vezes. Me lembro de ter uns sete anos. Quem com essa idade anda sozinho pelas ruas hoje? Eu tinha uma bicicleta Caloi dobravelzinha azul, que usava quando ia sozinho. Havia comprado um cadeado de segredo na cor verde, o qual tenho guardado até hoje.

De vez em quando, havia alguma rusga. Uma vez, um garoto tirou a nossa paciência. Eu e ela o botamos para correr. E ele correu. Entrou em casa por um vão no portão e nós fomos embora. Pouco tempo depois, a mãe do garoto nos perseguiu com um Fusca, o garoto no banco de trás. Estacionou ao lado, deu-nos aquela bronca, além do sermão, “sabia que vocês podem combater o mal com o bem?”. E eu: “Como?!”.

Ela sempre passava em casa para irmos tanto à escola quanto ao ginásio. Algumas vezes não íamos ao ginásio. Outras eu me recusava a ir. Ela disse: “não te chamo mais, você nunca vai”. Achava aquilo um tanto sacal. Não o fato de praticar esporte, mas a dificuldade em socializar. Ela me ajudava no que podia.

De vez em quando, vinha brincar em casa. Em outras ocasiões era eu que ia brincar na casa dela. Uma residência antiga, como todas as outras naquele bairro. Moravam várias pessoas lá, vários parentes. Lembro do avô dela, que trabalhava como pedreiro (daqueles que usava um saco de papel na cabeça). Lembro de quando a avó dela faleceu, de quando o avô casou novamente e teve um filho, um garotinho bem mais novo que ela dizia: este é meu tio.

Uma casa que estava sempre em construção ou reforma. Uma vez o pai dela transformou dois cômodos da casa, além da garagem, em uma escola de capoeira. Ainda lembro do letreiro que havia na entrada. Adorava brincar na mesa de escritório que ficou no espaço da garagem, aonde era a recepção. Me lembro de ter participado da comemoração de aniversário dela mais de uma vez. Tinha até show de mágica com mágico profissional, que me fez botar um ovo e lhe deu de presente um coelho de verdade, que ela batizou de “Gustavo”.

Quando a palavra “capoeira” me vem à mente, é deles que me lembro. Na época em que os aparelhos de TV eram preto e branco, havia um programa infantil chamado Pullman Júnior. Uma bela manhã, vejo um pessoal jogando capoeira no programa. Reconheci o pai dela, tocando berimbau. E não é que ela estava lá também? É vívido na minha memória ela tentando fazer um movimento qualquer e caindo sentada. À tarde tirei um sarro dela na escola.

Em boa parte das vezes, a mãe dela me convidava para almoçar. Extremamente gentil. Certa vez ela nos proibiu de sair de bicicleta logo após o almoço. Disse que fazia mal, no que prontamente respondi: não tem problema, é só peidar duas vezes e pronto. Disse e logo percebi que não deveria ter dito. Um tempinho depois, a filha disse: acho que está quase na hora, já foi um.

Certa vez, a mãe dela flagrou o momento em que ela estava em cima da máquina de lavar. Me lembro que a mãe pegou um cabide de madeira e gritou: desce! Ela, assustada, suplicou que a mãe não batesse e se prontificou a descer. Não aconteceu nada, mas era assim que as mães agiam naquele tempo.

Me lembro uma vez que brigamos e ficamos um certo tempo sem nos falar até que estávamos na escola em algum evento. Nossos pais também estavam. Meu pai me chamou e fez questão que eu retomasse o contato. Assim foi feito, reatamos na hora a nossa amizade. Com criança é tão fácil.

Noutra vez, um garoto quis arrumar uma briga comigo. Tanto encheu que um dia aconteceu. E como eu era ruim de briga. Eu era maior, mais forte e proporcionalmente medroso. Chegou uma hora que ela tomou a iniciativa. Me pegou pelo braço e saiu me puxando: “va-mo-em-bo-ra!”. E quem acabou com a briga foi ela. Em outra ocasião, ela arrumou amizade com uma menina que eu não topava muito. Nesta época combinamos de ir à escola juntos e ela disse: “eu viro a cara com ela, mas você vai ter de ir comigo pra escola”. Topei na hora. Ao passar em frente à casa da garota, ela se juntou a nós e, simplesmente, a ignoramos. Era parceira.

Me lembro de uma vez que estávamos voltando da escola e ela bateu a cabeça numa lixeira fixada no muro sem maiores consequências. Era costume naquela época fixar a lixeira assim. Um dos meus primos foi parar no hospital depois de bater a cabeça em uma enquanto jogava bola. Um perigo. Mas, naquele dia, eu ri dela. Não sei se eu era tão amigo dela quanto ela era de mim.

Falando no meu primo, estava na casa dele quando recebi um telefonema da minha mãe dizendo que haveria um batizado dela na capoeira e que ela havia me escolhido para participar, não lembro ao certo o que era. Minha mãe disse que o pai dela me buscaria, se eu quisesse participar. Não quis. É que estava tão legal lá na casa do meu primo e, não sei porque, sempre tive um senão com a capoeira. Nunca descobri o porquê. O fato é que recusei o convite. Mas, lembro até hoje da sensação que tive depois. Não deveria ter recusado o pedido dela.

Certa vez, estávamos voltando da escola e a avó de um colega foi nos buscar (nem sempre íamos sozinhos). A mulher disse a ela: “então é você que costuma atrapalhar a amizade dos meninos?”. Demorei um pouco para entender que a avó falava sério. Num dado momento em que ela disse algo, a avó gritou: “CALA A BOCA!”. Violência gratuita. Não se trata alguém assim. Ainda mais por nada. Hoje, tenho certeza que foi por causa da cor da pele dela.

Uma outra vez, teve um garoto que implicava com ela (sempre na volta da escola). Chegou a cuspir no cabelo dela. Me senti incomodado. Ela era forte, não se abalava. Falava com os garotos na mesma altura. Tanto que o garoto, depois, passou a mão no cabelo dela e limpou o cuspe. Terá sido também pela cor-da-pele?

Numa outra ocasião, na quinta-série. O professor havia acabado de entregar a prova de inglês. Eu cursava o idioma em escola particular. Gostava e ia bem. Na escola, tirava de letra. Peguei a prova e, ao passar por ela, notei que chorava baixinho. Perguntei o que houve e ela me mostrou a prova. Tirou um “E”. Apesar das dificuldades, não reprovou.

No início da sexta série, meu pai comprou uma nova casa. Íamos nos mudar de bairro. Eu ia me mudar de escola também. Na casa havia até piscina. Minha mãe pediu que eu perguntasse a ela se tinha roupa de banho, na ideia de convidá-la. Perguntei, ela disse que sim. Mas, depois, não dei mais retorno. Um dia, na aula, ela perguntou: “você não ia me chamar no fim de semana?”. Não respondi. Depois disso, não tenho mais lembrança. Saí da escola, mudei de endereço e simplesmente a “esqueci”.

Meus pais ainda tinham certo contato com os vizinhos antigos. Um tempo depois, minha mãe disse que um deles a havia encontrado junto com a mãe e ela questionou o porquê d’eu não ter dado mais nenhuma notícia. Ela estava completamente coberta de razão. Tinha eu o direito de ter feito aquilo? De ter abandonado alguém que era a minha melhor amiga? Claro que não! Mas eu, naturalmente, tomei essa decisão de forma inconsciente. Juro! Vai ver, tive vergonha. Afinal, mudamos para uma casa grande, bonita. Ela ainda permanecia no mesmo endereço. Ainda guardo este sentimento, sem me atrever a dar-lhe um nome.

O fato é que não nos vimos mais e não sei explicar o motivo de ter agido assim. Eu poderia tê-la visitado. Ainda ia ao bairro às vezes. Lá havia uma família mais ou menos rica que construiu tipo uma mansão. Furaram um poço artesiano e construíram uma pia de granito para o lado de fora da casa. Assim, as pessoas faziam fila em frente a casa para pegar água. Nós, mesmo não morando mais lá, ainda íamos buscar água naquele local. E, mesmo assim, não fui visitá-la. Tenho um colega que mora até hoje naquele bairro e que, na segunda metade da década de 90, se mudou para uma casa exatamente em frente à dela, a qual eu visitava vez ou outra e em nenhuma dessas vezes eu fui visitá-la. Nenhuma!

Em 2001, tive um ímpeto de procurá-la, me justificar, me desculpar, sei lá. Cheguei a ter insônia pensando nisso. Perguntei a este colega se ela ainda morava lá. Ele disse que sim e brincou: “Por que? Tá a fim da mina?”. Não sei explicar o que houve, mas este ímpeto arrefeceu, sumiu. Não por completo, mas sumiu o suficiente para que eu não tomasse nenhuma atitude.

A vida seguiu, muita coisa aconteceu. Mudei de endereço umas tantas vezes, de cidade, de Estado. Mas, ontem me lembrei dela. Com toda força. Eis que tive um insight. Porra! O Facebook! Comecei a procurar. Encontrei. Achei o perfil dela, do pai dela. Achei uma fanpage dele. Descobri que ele ingressou no doutorado, que ainda é extremamente ativo no mundo da capoeira. Ele, aliás, é alguém de uma importância ímpar na cidade. Foi candidato a vereador algumas vezes. Ainda me lembro de ter chegado num bar em véspera de eleição com uns colegas e ter comprado bebida alcoólica escondido por conta da lei. Lá havia panfletos da campanha dele. Devo ter pegado o panfleto, mas não me lembro de ter votado nele.

Voltando ao facebook, confesso que fiquei contente com o que vi. Uma mulher bonita, com aspecto feliz, embrenhada na cultura negra, orgulhosa de si. Mãe. Forte como sempre. Vi a foto da mãe dela. Lembrei na hora. Mas, ao lado da foto, comentários tristes. Notei que a foto era, na verdade, a homenagem de um ano após o falecimento. Me veio à memória imediatamente o sorriso que ela tinha. Que pena. Como será que a filha está? Pensei em contatá-la. Devo? Depois de tudo o que fiz?

Perguntei à minha esposa, à minha filha. Ambas disseram que é complicado. Que a resposta poderia não ser agradável, que o tempo passou. Ou pior, ela poderia nem lembrar. Afinal, mais de 30 anos se passaram. Resolvi contatar meu colega, contei-lhe a situação. A resposta: “Sei como é. Acho que você devia deixar quieto”. Devia mesmo?

Na verdade, a dúvida permanece. Devo procurá-la? Devo me retratar pelo sumiço? Devo tentar entender o porquê de ter feito o que eu fiz? Afinal, eu era ainda criança. Teria eu agido de forma racista? Um racismo introjetado? Não sei. Nunca achei que pudesse agir assim com alguém. Especialmente ela. Mas o preconceito racial é algo tão forte e tão entranhado que acaba funcionando como uma espécie de onda. Contamina até quem não tem intenção e nem vontade de ser. Mas dizem que de boa intenção o inferno tá cheio. Então, talvez tenha sido. Fui criado vendo as pessoas ao meu redor agindo de forma preconceituosa e, paradoxalmente, nunca tive a vontade de diminuir ninguém por conta da cor da pele, embora não perdesse a piada. Uma vez, a faxineira de casa estava lavando a calçada e eu gritei da janela: “Desse jeito as pessoas vão pensar que você é escrava!”. Fui repreendido prontamente pela minha mãe, que contou a meu pai mais tarde, que me fez correr atrás da moça pra pedir desculpas. Obedeci e nunca mais fiz isso.

Mas, será que foi o caso com a minha amiga? Não sei. O fato é que sinto remorso por não tê-la procurado depois. Vergonha de ter postergado o contato tipo pra sempre. Me sinto um covarde. O mesmo covarde e medroso que não deu uma lição no garoto folgado em frente à escola. O mesmo covarde que não a defendeu quando a avó do menino a mandou calar a boca. O mesmo covarde que não tomou as dores dela quando o outro garoto lhe deu a cuspida. Mas, racista seria demais. Será?

Ontem foi dia de finados. Dia de lembrar dos que se foram. Curioso me lembrar disso tudo de forma tão intensa justo neste dia. De uma bonita amizade que foi assassinada. Que poderia ter sido ressuscitada e não foi. Justamente num dia de finados. Devo me sentir culpado? Quem sabe?. Afinal, lembro dela de um jeito tão afetuoso. Ela foi uma das minhas primeiras amizades nos primeiros anos de vida. E olha que amizade de criança é sincera. A dela foi. Será que da minha parte foi também? Se não foi, que eu sofra com esse remorso para sempre. Talvez seja bem feito.

De todo modo, o que está feito, está feito. Talvez seja conveniente crer que tudo foi esquecido após quase quatro décadas. Mas é engraçado pensar nisso. Todas as vezes que ando por aquela cidade, saio procurando com os olhos por pessoas conhecidas. É raro, mas, às vezes, encontro quem não quero encontrar. Finjo que não reconheço, passo reto. Fico pensando se ela não fez o mesmo. Talvez tenha me visto e mudado de calçada. Pensou: “ficou rico e sumiu, playboy, racista!”. Será? Quem sabe? Se não fosse medroso, covarde. Talvez mandasse uma mensagem inbox: “Oi, lembra de mim?”. Ou, “quantos anos vai levar para você me perdoar?”. Quem sabe?


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