As motos, o mecânico-favorito e o fim de uma vontade

Elas e eu

Não sei precisar desde quando e nem como, mas sempre gostei de veículos automotores. Meus pais comentam que desde muito pequeno eu conseguia distinguir marcas e modelos. “Que carro é esse, Marcelo? Um Chevette! E aquele? Fusca!”. Pra mim sempre foi algo natural. Acho que sempre tive uma relação intrínseca com a memória. Já o gosto devia ser coisa de moleque, afinal era comum entre a molecada da minha época.

Propaganda impressa de lançamento da CB 400. Foto: Divulgação
Propaganda impressa de lançamento da CB 400. Foto: Divulgação

Com motos não foi diferente, houve um momento em que percebi um interesse mais generalizado nas duas rodas pela fatia da sociedade da qual fazia parte. De repente apareceram os amigos japoneses do meu pai, alguns tios, vizinhos e logo meu pai. Lembro das conversas animadas entre eles no tempo em que as pessoas se visitavam e em nossa casa sempre tinha visita. A grande maioria era da linha 125 da Honda. Turuna era a minha preferida. O guidão baixinho, o formato do tanque e o barulho dela era o que mais me chamavam a atenção, um tio materno teve uma dessa. E havia também a minha paixão platônica, a CB 400. Ninguém que eu conhecia tinha uma dessa. Creio que os consórcios disponíveis na época favoreceram a adesão. Meu pai aderiu a um deles e me ensinou pela experiência que este é um dos piores tipos de investimento. Me lembro dele comentando sobre as tretas ocorridas durante as reuniões. Me lembro também de quando a moto dele foi entregue em casa, uma 125ML prata zero km. Veio na caçamba de uma Chevy 500 da concessionária. Chegou completamente desregulada, não pegava de jeito nenhum. Foi uma luta até a concessionária assumir o ônus e consertá-la.

Eu tinha por volta de 10 anos nessa época e, sempre que podia, brincava na moto. De vez em quando pegava a chave, ligava, buzinava… Uma vez consegui dar a partida mas tive o cuidado de colocá-la no Neutro. Minha irmã, com dois anos de idade, estava perto e entrou em pânico ao escutar o barulho do motor. Ela tinha pavor, exceto quando, certa vez, algumas pessoas estavam em casa experimentando pinga com cambuci. Minha irmã foi de pessoa em pessoa pedindo golinho e as pessoas deram, algo que hoje seria inaceitável. Isso a deixou bêbada a ponto de não conseguir parar em pé. Minha mãe sem saber muito o que fazer lhe deu um banho frio e a acompanhou até o porre passar. Meu pai a colocou sob o tanque da moto e ficou passeando pela rua em baixa velocidade. Nesse dia, ela adorou.

Primeira viagem ao litoral. Da esquerda para a direita, A ML do meu pai, a CG do meu tio e a Turuna do amigo dele. Meu capacetinho estava sob a predileta. Foto: Arquivo
Primeira viagem ao litoral. Da esquerda para a direita, A ML do meu pai, a CG do meu tio e a Turuna do amigo dele. Meu capacetinho estava sob a predileta. Foto: Arquivo

Aos 12, o assunto já era a minha realidade. Todo mundo tinha moto, Mobylette, etc. A primeira vez que pilotei uma Mobylette, a de um primo, foi incrível e fácil, era só acelerar. Mas compreender como se dava a troca de marchas, conjugar o apertar da embreagem e o engate no câmbio seguia sendo um mistério. Eu ainda estava na bicicleta, mas observava de longe o procedimento. A forma mais didática que encontrei para aprender foi colocar a moto do meu pai no cavalete, dar a partida e treinar as trocas das marchas. Com todo cuidado, engatava de primeira à quinta. Depois reduzia uma a uma. Conforme desenvolvi segurança, comecei a pilotá-la no quintal de casa apenas em primeira marcha. De vez em quando arriscava uma segunda.

Quando meu pai se deu conta, eu já dirigia moto e carro. O carro, aliás, treinei da mesma forma. O quintal era plano, uma reta com uns 30 metros de comprimento. Empurrava o carro no sentido da rua, ligava, puxava o afogador para manter a aceleração constante, engatava primeira e ia até os fundos. Assim, só precisava me preocupar com a embreagem e o freio. Usei o mesmo procedimento para aprender a dar ré. Depois de desenvolver certa experiência, ensinei um então amigo da mesma forma em casa, no carro e na moto. Nunca houve um acidente sequer exceto quando coloquei minha ainda pequenina irmã caçula sentada no banco traseiro sem o cinto de segurança e ela caiu de cabeça no chão do carro quando freei bruscamente. Estávamos eu e esse então amigo, resolvi encostar uma faca na testa dela para que o galo diminuísse antes da minha mãe chegar. Deu certo.

Nessa idade me permitiam circular com a moto em pequenos trajetos. Quando o rolê era de carro, meu pai ia junto. Aos 15 a confiança já era maior e eu usava a moto para pequenas tarefas como buscar pão e leite na padaria. Numa dessas, parei em um cruzamento no bairro onde morava. Olhei pelo retrovisor e vi o opalão da pm logo atrás. A viatura parou do meu lado: “É de menor?”. Sim, mas estava de capacete, que fique claro. “Tem quantos anos?”. Quinze. “Puta que o pariu… Faz como, sargento? Ué, vai ter que levar, né?”. Não acreditei que aquilo pudesse estar acontecendo. O sargento: “Ué, quem mandou dar asa pro azar?”. O azar foi eu ter esquecido de acender o farol. Naquele início de noite, a rua virou palco para um espetáculo. Nunca havia aparecido tanta gente para me ver. Um conhecido passou por lá e se encarregou de avisar minha mãe que foi ao local acompanhada dos meus irmãos. Quem a levou de carro, aliás, foi um vizinho menor de idade. A moto foi recolhida, fui para a delegacia sozinho em uma viatura com dois pm’s. Minha mãe e meus irmãos foram em outra.

Durante o trajeto até a delegacia, um dos pm’s comentou, “Você deu azar do sargento estar lá. Por que você não mandou ele tomar no cu?”. Fiquei em silêncio. “Hein? Por que você não mandou ele tomar no cu?”. Percebi o tom de intimidação e respondi um lacônico “não sei”. O pm emendou, “Se tivesse mandado tomar no cu ele te liberava”, olhou pro parceiro que dirigia e os dois riram. Já na delegacia o escrivão deu um ataque de pelancas, “Se eu fosse o delegado, pegava um machado e arrebentava essa moto. Que irresponsabilidade!”. Minha mãe não deixou barato: “Não seja por isso, vai lá e arrebenta!”.

De todas as possíveis multas, as únicas efetivadas foram as do licenciamento, que estava atrasado há três anos. Mas houve uma audiência judicial e fomos meu pai e eu ao fórum. A escrivã, uma mulher negra de uns trinta ou quarenta anos, nos recebeu no lugar da juíza e deu o veredicto: “Olha, eu vou te liberar agora, mas não faça mais isso. Na próxima, você pode parar na Febém. Vai virar mulherzinha lá porque eles fazem troca-troca”. O soldado havia dito o mesmo durante a abordagem. Qual é a fixação desse povo pelo cu alheio? Eu, menor de idade, sendo ameaçado de estupro por representantes do Estado. “Posso contar com a sua colaboração?”, perguntou a representante. Claro! Quem tem cu tem medo. Qualquer coisa para que o meu se mantenha preservado.

Meu pai não disse nada acerca da suposta ameaça. A audiência foi encerrada com o compromisso de que eu nunca mais dirigisse até estar habilitado, mas a promessa durou até o dia em que fomos, nós dois, retirar a moto do pátio. Ele não encontrou ninguém que o ajudasse. Pediu para o funcionário do pátio, para uma pessoa na rua, ninguém se dispôs. Sendo assim, ele recorreu à única solução possível no momento, me deu o capacete e disse: “toma, leva você”. E assim fui guiando a moto até em casa.

Ser menor de idade e parado pela polícia não foi exclusividade minha. Quase todos os meus colegas também rodaram naqueles anos. No meu caso, a fim de facilitar o cumprimento da promessa, a moto foi levada pro interior, onde teria mais serventia até que eu estivesse oficialmente autorizado a conduzi-la. Nos encontrávamos por lá, ela e eu, sempre que possível. Certa vez, uns colegas estavam em visita pela região. Meu pai sugeriu que eu fosse de moto e os encontrasse à noite na cidade. Saímos, bebemos e retornei após às 4h da madrugada num frio danado e sem qualquer incidente. Responsabilidade acima de tudo.

Após estar com idade e devidamente habilitado, pude trazer a moto de volta para casa. Viajei por cerca de 150 km em lugares como a rodovia Fernão Dias, a av. Aricanduva, São Matheus, até chegar sem nenhum arranhão. Assim, passei a usá-la cotidianamente para ir ao colégio, faculdade, para o trabalho, passeio, etc. No período em que a tive, fiz apenas uma viagem para a praia onde eu e alguns colegas fomos parados pela pm. Éramos três e um de nós escapou numa XLX 350. Meu então amigo (o que aprendeu a guiar no quintal de casa) perdeu sua DT 180 por conta do pneu careca e a minha ML foi junto por conta do lacre da placa, cujo cabo de aço deveria estar preso ao quadro e não ao suporte da placa. Estava assim desde quando fora emplacada e ninguém nunca havia criado caso, nem sequer quando a recolheram da vez anterior. O caso se resolveu de forma bem simples e rápida. Fomos ao pátio, pagamos uma quantia em dinheiro e as motos foram devolvidas. Dessa vez passou, na vez seguinte não. Certa vez, um comando me parou no caminho para o trabalho. Encrencaram com o capacete pendurado no braço (“Capacete é pra proteger o cotovelo, é?”) e o lacre novamente. Não levaram a moto, mas ficaram com o documento dela. Aí tive de regularizar o problema de uma vez por todas.

Com o tempo, deixei de pilotar. Me pergunto qual teria sido o motivo. Muita gente afirma ter abandonado o motociclismo por medo de acidentes. Acho que não foi o meu caso. Durante o tempo em que estivemos juntos, a moto e eu, foram três ou quatro tombos bem bobos, nunca me acidentei de fato. Apesar do perigo, pilotar sem capacete naquela época era a regra e não a exceção como na vez em que fomos eu e o então amigo na garupa até o autódromo de Interlagos assistir a uma etapa do Marcas e Pilotos de shorts, chinelos e sem camisa pela av. Cupecê num sábado à tarde ensolarado. Moto tem a ver com amizades e eu fui perdendo o contato com o pessoal que andava de moto incluindo o então amigo, que se tornara um mero conhecido. Capaz que tenha sido isso. Havia também o fato de estar indo a pé para o trabalho, mas acho que as abordagens deseducadas e até abusivas da pm nas blitz contribuíram. Independentemente do que possa estar errado, uma coisa não justifica a outra.

Meus pais também ficavam preocupados. Me lembro de quando soube por eles do acidente ocorrido no interior onde a moto esteve. Uma Brasília conduzida pelo filho menor de idade do dono da venda colidiu de frente com a moto do filho do dono da olaria, uma ML quadrada mais nova que a minha. O motoqueiro, com 19 anos, fraturou o pescoço e morreu ali mesmo a poucos metros de onde morava. Até hoje existe uma espécie de mini-igreja na beira da estrada de terra em homenagem ao rapaz. Toda vez que passo por lá, cumprimento-o e mentalizo boas energias. Assim, logo que notou meu desinteresse pela moto, meu pai deu um jeito de vendê-la, o que foi um episódio à parte.

O interessado veio em casa acompanhado de um amigo. Foram amistosamente recebidos. Porém, de acordo com a cor-da-pele dos mesmos, algum vizinho entendeu tratar-se de um assalto e chamou a polícia. Tocaram a campainha, meu irmão atendeu achando que era um amigo dele e se assustou ao ver uns cinco pm’s ou mais com armas de grosso calibre apontadas exigindo que se abrisse o portão imediatamente. É… Fizeram questão de entrar em casa para terem certeza de que se tratava de um alarme falso. Me lembro de ter dito algo sem muita polidez convidando-os a se retirarem já que não havia nada a ser feito ali. A moto estava parada há algum tempo e vinha apresentando problemas no carburador. Gosto de dizer que o carburador é o coração da moto e a minha devia estar de coração partido. Pegou na primeira tentativa mas avisei ao comprador que ela poderia logo apagar. O amigo acompanhante, todo prosa, disse que não havia problema. Trouxera uma corda e amarraria a moto no Fusca se necessário.

Venda efetivada e lá se foi Maria Lúcia em sua última viagem, uma moto quase toda original, com menos de 20 anos de idade e pouco mais de 20 mil quilômetros rodados. Digo última viagem pois o comprador telefonou no dia seguinte relatando que ela, de fato, havia apagado em uma avenida principal a poucos quilômetros de casa e fora amarrada ao Fusca. A um quarteirão do destino, numa descida, a corda entre a moto e o Fusca afrouxou e enroscou na roda dianteira. O resto da história você consegue deduzir. Perguntei se a moto havia se machucado. “Ah, bastante, viu?”. E o seu amigo? “Machucou bem também”. Ele ligou para dizer que Maria Lúcia (a moto que eu tive) havia se acidentado e morrido naquela noite de final de semana. Tempos depois, soube que deram uma garibada nela e o proprietário a vendeu. Nunca mais tive notícias.

Esse foi o triste fim de Maria Lúcia. O nome foi dado a ela por conta das iniciais do modelo, numa brincadeira que inventei com a galera da qual fiz parte. Cada uma de nossas motos tinha um nome, havia a Daniela Tavares, duas Tânia Dantas Rodrigues, a Maria Lúcia… Dia desses, achei o anúncio de venda de uma moto igualzinha a que tive por módicos R$ 17 mil. Enviei ao meu pai perguntando se sentia saudades. Disse que sim, saudoso e arrependido de tê-la vendido. Nesses momentos penso sem dizer nada: É, eu avisei. Maria Lúcia, por sua vez, pressentia o próprio fim posto que sofria do coração. Coisas de antigamente, carburadores já não existem mais. As motos de hoje não têm coração.

Nunca mais tive moto após a partida de Maria Lúcia, mas a vontade nunca se foi. Uma amiga da minha esposa, certa vez, apareceu em casa com uma XL 125. Dei uma voltinha com a patroa na garupa, comentei sobre a minha vontade. Ela respondeu empolgada, “Por que não? A gente vai ter uma, sim”. Noutra vez recebi a visita de um colega de classe da aula de música, que veio em uma XR 200. Claro que aceitei dar uma volta assim que ele ofereceu. Em outra oportunidade, quando minha primeira filha nasceu, um opalão da pm fez uma conversão errada acertando a porta do meu Gol bolinha e uma sobrinha emprestou a Strada 200 dela por uns dias enquanto o carro esteve na funilaria. Ficava inventando coisas pra fazer fora de casa só para andar de moto. Certa vez resolvi parar numa concessionária da Yamaha e assuntar sobre a Virago 250. A filha já mais crescida apontou para uma prateleira da loja: “Olha, pai, ‘pacacete’!”. Minha esposa (e o hábito de dar corda para o assunto) disse que seria boa ideia adquirir uma e que ela, quem sabe, poderia até usar também. Porém, pouco tempo depois ela foi vítima de um assalto a mão armada. Perdeu o carro e os pertences em frente a uma padaria num bairro nobre da cidade.

Foi motivo suficiente para enterrar o assunto e sublimar a tal vontade, mas décadas depois, há uns dois anos, minha cunhada comunicou uma notícia preocupante: o marido estava internado com um quadro grave de enfisema pulmonar e que havia evoluído para uma infecção generalizada. Estava em coma induzido. Pensei, “acho que dessa ele não escapa”. Não escapou, faleceu semanas depois. O momento trouxe à memória lembranças de conversas que tivemos. Num desses episódios ele comentou sobre seu gosto por motos. Teve várias. A última delas, uma CB 400 preta 1982 a qual não usava mais e mantinha guardada. “E eu gossssto dasss primeirasss! Masss com o guidão da CB 400 II, que é muito maisss conforrrtável”. Carioca da gema e militar da reserva, sua atividade principal era a de antiquário. Numa visita ao local de trabalho dele, uma loja de antiguidades conjugada a um barracão no bairro de Santa Tereza, lá estava ela. Deduzi que era a própria pois consegui enxergar o guidão e o tanque no meio da tralha. Caramba, eu sempre tive uma paixão platônica pela CB. E dasss primeirasss…

De lá pra cá fui percebendo as mudanças nas tendências, no design e no layout das motos conforme a evolução dos modelos. Foi como se houvesse um corte brusco na linha do tempo. De repente as motos ficaram tão feias. Plásticos para todo lado, ficaram bicudas. As customs foram sumindo enquanto outras se tornaram protótipos dos Transformers. Talvez isso explique minha predileção pelas antigas. Após a morte do meu cunhado, surgiu a dúvida: será que a viúva me venderia a moto dele? Minha esposa até conversou com a irmã sobre a possibilidade. Vislumbrei que, de repente, ela poderia cobrar um valor mais simbólico ou me dar a moto, já que seria necessário fazer uma senhora revitalização em vários sentidos até trazê-la de volta às ruas. E, para isso, uma boa quantia financeira seria necessária. Pensei que isso poderia ser até uma espécie de homenagem ao meu cunhado, mas as conversas não evoluíram para lugar nenhum.

O mecânico-favorito

A CB do cunhado estimulou a busca por mais informação a respeito. Comecei a fuçar no YouTube, fui cutucando de tudo até chegar no canal de um cara conhecido como Mario 7Galo e descobri que existe todo um universo envolvendo a CB hoje em dia. Fui tirar uma opinião com um amigo que já foi mecânico de motos e entende do assunto bem mais do que eu. “Cara, moto velha é bucha, carburador dela é zica, manutenção cara, dificuldade em achar peça, não é qualquer um que mexe…”. Em princípio o conselho não me abalou e segui fuçando no YouTube até descobrir a existência de um mecânico especialista em CB’s, inacreditável. Gordinho, empolgado, falante, uma verdadeira enciclopédia no que se refere ao assunto. Para mim foi um verdadeiro achado. Jamais imaginei haver alguém assim. Nem preciso dizer que o assunto moto foi tomando forma mais uma vez na minha cabeça a ponto de parecer um projeto passível de se concretizar. Se um dia eu tiver uma CB, já sei quem será o mecânico dela.

Aos poucos fui descobrindo mais sobre o tal mecânico. A casa e a oficina ficam no mesmo endereço num canto da zona leste de São Paulo com as ruas sem pavimentação. O local é simples mas com toda identidade, tem as paredes de tijolo sem rebocar e até um nome: Recanto Bom e Lascado. A oficina é cheia de motos, boa parte delas são CB’s. Num dos vídeos do Mario 7Galo, o título que o torna autoridade no assunto: O Rei das CB’s, que ele gentilmente recusa. Não se considera rei de nada. Me tornei um admirador. Vi como faz, por exemplo, para equalizar os carburadores da CB, aprendi o porquê de um motor pequeno com apenas 400 cilindradas ser tão potente. “É porque os dois cilindros trabalham juntos na mesma direção”, explicou didaticamente.

Em pouco tempo de YouTube, o professor (assim se autodenomina no nome do canal) me ensinou sobre a CB tanto tecnicamente quanto filosoficamente. Imagina alguém que beija a moto e se declara para ela. Que se emociona ao falar dela. Que faz promessas, “Você confia em mim? Farei todo o possível para te tornar uma grande motocicleta novamente. Você topa?”, pergunta ao que sobrou de uma CB 450 DX verde em um dos vídeos que termina com a promessa cumprida. Ele se tornou o meu mecânico-favorito. Saber da existência dele foi um alento para o meu possível-projeto de ter uma moto. Quem sabe uma CB 400?

Meses após o falecimento do meu cunhado, fomos passar o natal no sítio onde ele morava, a casa da minha cunhada no interior do Rio. Tudo o que havia nas lojas e no barracão agora estava lá, incluindo a CB. Finalmente vou conhecê-la! Estava no cavalete, coberta por uma capa ao lado de uma grande churrasqueira. Toda suja, com bosta de rato sob o motor, os pneus murchos, o guidão da CB 400 II, bengalas douradas, laterais quebradas, sem placa, bem longe da originalidade. Pensei se seria uma boa ideia adquiri-la. Quanto será que vale uma moto dessa em tais condições, fora as despesas com a regularização da documentação, transporte, conserto, peças, etc.? Não cheguei a descartar a possibilidade, mas a própria situação botou um ponto final na mesma.

Outros tantos meses passados e, na festa de aniversário da minha mãe, surgiu a oportunidade de dar uma volta na Fat Boy do cunhado do meu irmão. Era o que faltava pra vontade voltar com tudo! Harley obviamente não era uma opção, mas quem sabe a CB? Ou a XLX 350? Ou a Ténéré 600 (a de 1989)? Ou a bela Virago 250? As que sempre estiveram no meu imaginário, até porque não vejo graça nenhuma nos modelos atuais da faixa de preço que me condiz. Para não dizer que realmente nenhuma delas me agrada, tem uma marca que havia recém descoberto e me chamado bastante a atenção, a Royal Enfield. A marca de motos mais antiga do mundo. Sério? Nunca ouvi falar. Descobri que havia uma concessionária próxima de onde moro e resolvi parar certa vez quando passei em frente. Experimentei a Classic e uma Meteor Fireball amarela. Gostei de ambas, mas a segunda me seduziu inclusive pela cor amarela. Coincidência ou não, hoje esta cor parece estar fora de linha.

Royal Enfield Meteor 350. Foto: Divulgação
Royal Enfield Meteor 350. Foto: Divulgação

O valor não é dos mais absurdos mas não sei dizer se teria uma. IPVA, seguro, medo de ser roubado, manutenções na concessionária só para manter a garantia… Um veículo zero km demandaria uma despesa relativamente alta. Será que eu preciso de tudo isso? É algo que justificaria o uso? Tentei deixar o assunto pra lá mas mantive a fritação no YouTube. Essa bipolaridade não tinha como dar certo. Conheci outras motos, marcas e modelos, outros youtubers. Um deles, o Carlos Gonzalez. Dizem que é o primeiro motovlogger brasileiro. Artista visual, músico, pai fresco. Um sujeito que bota sob a moto questões do cotidiano, angústias, alegrias, etc. O canal dele tem uma estética bem diferente dos demais. Sempre tive vontade de escrever pra ele e compartilhar as minhas angústias e alegrias relacionadas ao conteúdo veiculado, até porque acho que somos muito parecidos, mas nunca tive coragem.

Consumir esse tipo de conteúdo estava sendo uma faca de dois gumes. Aos poucos entendi que a brincadeira poderia ter um custo alto e talvez estivesse além do que imaginava. Na mesma intensidade da fritação, a ponderação e a cautela disputavam espaço na minha cabeça. Para que ter uma moto? Comecei a elencar os motivos ao mesmo tempo em que reunia argumentos para refutá-los. A moto poderia ser para trajetos curtos, para reduzir o uso do carro e otimizar o consumo de combustível já que, onde moro, ter um meio de transporte próprio é praticamente obrigatório. Tudo é longe e uma moto até que viria a calhar. Não tenho interesse em ir pra estrada, viajar pro Ushuaia, fazer a costa brasileira, nada disso. Só queria algo para me deslocar por aqui, um bom custo X benefício mas que pudesse me arrancar algum sorriso ao olhá-la na garagem.

O que poderia ter sido um processo gostoso, empolgante e natural se tornou um verdadeiro inferno. Vários modelos em vista, opções e preços, moto velha, moto nova, moto zero km, ipva, seguro, manutenção obrigatória em concessionária, dúvidas e mais dúvidas. “Prudência e dinheiro no bolso, canja de galinha não faz mal a ninguém”, diz o poeta. A fritação no YouTube aumentou. A Royal lançou a Hunter 350 a um preço relativamente convidativo. A Triumph se preparava para lançar seus dois modelos de 400cc. Confesso que até cheguei a incluir meu nome na fila de espera e no dia seguinte pedi para retirar. Uma fortuna dessa?! Financiamento? Despesas a mais? Uma grana que pode fazer falta no futuro? Claro que não! Nada justificaria tal loucura. Talvez o mais certo mesmo seja esquecer o assunto de uma vez por todas, dar um basta nessa história. Pedi ao YouTube para não me recomendar mais os canais que estava acompanhando, incluindo os do Mario 7Galo, do Carlos e o do meu mecânico-favorito. Se a ideia é enterrar o assunto, não tem sentido continuar consumindo esse tipo de conteúdo. É auto-tortura.

Royal Enfield Hunter 350. Foto: Divulgação
Royal Enfield Hunter 350. Foto: Divulgação

A dieta durou por algum tempo. Confesso que fiz o que pude para sublimar o desejo quase-incontido, mas isso se tornou uma espécie de vício. Semanas atrás, por exemplo, entrei numas de achar que poderia haver uma saída para o meu dilema. Depois de assistir a um vídeo sobre customização, pensei que seria possível adquirir uma moto-meio-velha-mais-em-conta e customizá-la a ponto de ser única. Algo com a minha cara e assinatura e livre de IPVA. Quem iria querer roubar uma coisa dessa? Algo sem nenhuma relação de afeto anterior e que, portanto, pudesse ser modificada sem qualquer remorso. Uma relação de afeto zero km, uma ideia que me pareceu perfeita mas que, na verdade, foi o prato cheio para mais uma recaída.

Quem sabe uma Mirage, uma Kansas, uma Horizon, uma VBlade ou uma Intruder? Lá fui eu fuçar no OLX e conversar com o meu amigo. “Cara, são motos fora de linha, não acha peça, mecânica mais cara, não é qualquer um que mexe… Por que você não cata logo uma CB?”. Na tentativa de tentar me demover da loucura, meu amigo abriu mão de sua convicção e encaminhou o anúncio de uma no Facebook. Logo encontrei outros anúncios, valores entre R$ 8 e 15 mil. Fui ver uma delas numa oficina e o proprietário não me deixou pilotar. Disse que eu não tinha condições para tal. Vai ver é vidente, tirou essa informação de onde? Sugeriu que eu adquirisse alguma 125 “para começar”, tipo uma Intruder. Agradeci e lhe desejei boa sorte se conseguir vendê-la a alguém que não a possa experimentar.

A Intruder, por outro lado, não era má ideia. A 125cc, não, mas a 250cc viria a calhar. Vi vários vídeos de customizações dela. Achei o anúncio de uma num valor acessível e na cidade em que o meu amigo mora. Ele foi vê-la e a aprovou. Negociei o preço com o proprietário, chegamos a um consenso. Paguei para fazer uma pesquisa na documentação. O meu amigo indicou um mecânico que faria a revisão para eu poder pegar estrada e trazê-la para casa. Tudo certo até que o proprietário voltou atrás dizendo que apareceu um interessado de última hora e que, segundo ele, “resolveu pagar o valor inteiro”. Nessa gastei R$ 120 à toa. Tão perto e tão longe. Mandei o proprietário à merda, a negociação estava cancelada. Meu amigo e o mecânico rogaram para que eu não perdesse a fé, mas meu transtorno de humor falou mais alto. Foda-se! Não quero mais saber desse assunto. Havia marcado com o dono de uma Virago 250 aparentemente conservada em uma cidade próxima no final de semana. Desmarquei. Chega desse assunto.

Porém, havia ainda uma conversa pendente sobre uma CB vermelha 1982. Ofereci ao proprietário de marcarmos na empresa de inspeção veicular onde encomendei a pesquisa de documentação da Intruder. Achei que ele não fosse aceitar, mas aceitou. Fiquei com pena de deixar passar a oportunidade e abri a exceção, marcamos num sábado de manhã. Cheguei na empresa por volta das 9h30. Meia hora depois escutei a CB chegando. Não era o ronco que eu esperava, a CB costuma ter um barulho delicioso. A moto estava bonita de modo geral mas nem tudo estava funcionando, bem como a partida elétrica. Mas o que chamou a atenção, minha e do inspetor de veículos, era o barulho do motor. Havia problema num dos escapamentos e também nas válvulas. Poderia ser um simples ajuste ou algo mais grave. Os carburadores precisavam de manutenção também. As motos com problemas no coração… E a CB tem dois.

O dono da moto, que me pareceu ser gente-boa, topou negociar o valor e aceitou minha oferta. Dei uma volta com a CB, a segunda vez que piloto uma. A primeira foi há 32 anos. Uma moto potente e que, ao mesmo tempo, tem uma ciclística simples. Conversamos um tanto e fiquei de dar um retorno. Mas ao conversar com o inspetor… “Olha, eu acho que ainda não é a moto que você procura. Esse barulho no motor pode te trazer uma baita dor-de-cabeça”. A elétrica era uma incógnita também, “já pensou se o problema for no chicote?”. O inspetor sugeriu dar uma passada numa oficina perto dali. Fui, mas estava fechada. Entendi como um sinal. Mandei mensagem pro meu amigo que já devia estar de saco-cheio desse assunto. “Cara, minha maior vontade é te ver em cima de uma motinha. O preço tá bom. Pega ela e vai aprendendo a mexer. Tipo um hobby”. Cada hobby que eu começo acabo deixando de lado. Algo me diz que é melhor não.

Mais tarde, em casa e sem saber o que fazer ou ter a quem recorrer, tomei uma atitude desesperada: Vou pedir conselhos ao Rei das CB’s. Nunca havia me atrevido a entrar em contato, mas era uma emergência. “Boa tarde. Como vai? Quem escreve é Marcelo, sou um admirador do seu trabalho e da sua pessoa. Escrevo para fazer uma pergunta nada usual: você oferece consultoria grátis?”. Minutos depois veio a resposta sugerindo um dos vídeos do canal dele e a mensagem de que o mesmo poderia responder a todas as minhas perguntas. Já conhecia o vídeo. Agradeci, mas reforcei que minha dúvida era específica e que me desculpasse pois não voltaria a incomodá-lo. Ele retornou dizendo que eu poderia enviar as perguntas e que responderia na medida do possível, mas avisou que não atende ligações telefônicas. Sendo assim, escrevi um textão relatando tudo o que podia e encaminhei.

O mecânico-favorito foi bastante generoso, gravou um áudio com mais de seis minutos. Uma das qualidades que aprecio nele é a maneira bonita com que escolhe as palavras para se comunicar, além da didática. Escutei o áudio atentamente algumas vezes a fim de compreender o recado. “Esta CB… ela já tem 42 anos. Ela não deve nada pra ninguém, ok? Ela venceu o mau tempo, o mau uso, o péssimo piloto, se envolveu em acidentes, ficou esquecida na garagem, já sofreu excesso de uso, já recebeu combustível ruim, ou seja, já aconteceu de tudo com essa moto. E ela tá aí ainda, valendo esse preço. E tá barato. E ela vai continuar aí por muito tempo ainda. Enquanto tiver quem ame e quem cuide, ela vai continuar funcionando. Mas tem as cicatrizes…”.

As cicatrizes… “Ela está de um jeito agora que, por mais que você gaste dinheiro, não tem como consertar. Tudo tem seu limite. Desgastes na carcaça do motor, micro-alinhamentos, imperfeições que não têm conserto por melhor que seja a restauração. Você pode gastar R$ 50 mil numa restauração. Ela vai continuar tendo 42 anos de idade”. A ficha foi caindo, não tinha pensado dessa forma. “Lavou, não pega. Abasteceu com combustível ruim, falha. O tanque vai enferrujar. O carburador é difícil de mexer, o cara tem que ser bom. E uma vez por ano tem que gastar dinheiro nele. O motor é pior ainda. Se tiver alguma coisa fora de ordem, vai um dinheirão embora”. A cada argumento foi como se ele fosse quebrando em pedaços cada uma das minhas convicções. “Eu acho que, pra você, isso não vai rolar porque você tá com muita cautela e muito medo”.

O rei, de maneira bonita e sincera, deliberou que a CB não é para mim. “É complicado, é moto velha. É uma caixinha de surpresas. Se você tiver de abrir para trocar uma corrente de comando, é capaz de você ter de fazer o motor inteiro e fazer o motor inteiro custa o valor que estão te pedindo nela”. No fundo, acho que eu é que não sirvo para a CB! Não sou digno da CB e tampouco das demais citadas. “É complicado, é moto velha…”. Eu só queria uma boa relação custo X benefício, ser o último-dono-de-uma-moto-meio-velha-mais-em-conta. Algo que pudesse me servir e, ao mesmo tempo, me arrancar algum sorriso assim que a olhasse na garagem. Mas moto velha é complicado, “Eu acho que, pra você, isso não vai rolar…”. De fato, a cautela é um fator muito forte em mim. Eu planejo, avalio, pesquiso, busco referência, penso, consulto, penso de novo… Tsc, tsc, tsc, o rei me explicou que, nesse caso, não é bem assim. “Uma CB, meu velho, é pra quem não tá nem aí. É pra quem diz, ‘Eu não quero saber se vai dar problema ou não, é o sonho da minha vida! Vou gastar 15, 30 pau nela e não é pra ficar andando todo dia, não. Eu vou botar ela na sala e ai de quem der partida. Só eu vou pilotar!’”.

O fim de uma vontade

Triumph Speed 400. Foto: Divulgação
Triumph Speed 400. Foto: Divulgação

Eu só queria ser o último-dono-de-uma-moto-meio-velha-mais-em-conta mas entendi que a CB não é o sonho da minha vida. O rei conseguiu ler nas entrelinhas do meu pequeno-textão algo que não percebi, “Por que você não pega uma Meteor? É uma moto nova. Você não vai ter dor-de-cabeça. Ainda mais na idade em que a gente está”. Aquela Fireball amarela? “Nenhuma outra moto pode te oferecer qualidade e conforto melhores do que a CB, porque a idade dela prova isso, correto? Mas a sua cautela e a sua expectativa são maiores do que o que ela pode te oferecer”. A conclusão é óbvia: Não sou digno nem da minha própria vontade. Se existe todo esse receio, então nenhuma alternativa vale. Uma antiga, ainda que me traga reminiscências da infância e da adolescência, não cabe nessa vontade. Já uma nova também não porque remete a outros receios. Em suma, não é meu sonho, eu que busque arrancar sorrisos em outro lugar.

Se este sonho não é o meu, qual seria? Acho que nenhum. Sonhos são pra quem não tem medo ou para quem não enxerga as coisas como despesas financeiras; talvez para quem tenha dinheiro sobrando. Sonhos existem para serem perseguidos. Eu só queria ser o último-dono-de-uma-moto-meio-velha-mais-em-conta. Quem sabe isso se justificasse enquanto sonho? Talvez, se eu mesmo pudesse dar manutenção, consertar, revisar. Se eu mesmo pudesse ser o meu mecânico-favorito. O tal hobby que o meu amigo sugeriu. Só te digo uma coisa: sabe quem se encontra numa situação muito semelhante? O Carlos Gonzalez. Pergunte o que ele acha disso. Nem precisa, assista ao vídeo no canal dele sobre.

Por fim, o rei acrescenta: “O que pode acontecer é você desgostar da moto e ela, por sua vez, sofrer na sua mão por você não ter dinheiro ou ficar abandonada na garagem, sendo mal reparada, sendo feito paliativo, um mais ou menos. Não é o que ela merece”. Claro que não. Nenhuma CB merece ficar abandonada na garagem. Nenhuma moto merece. “Vontade é uma coisa que dá e passa”, diz o ditado. A minha também há de passar. Hei de tratá-la com toda a indiferença e desprezo que ela merece e vê-la sucumbir aos poucos até deixar de existir. Porque ela vai deixar de existir. Ou ela ou eu. É a realidade, fazer o quê?

E falando em realidade, veja como são as coisas. Hoje fui levar minha esposa até a rodoviária da cidade. Fomos de carro. Na volta passei pela avenida onde fica a concessionária da Royal Enfield e também a oficina do sujeito que não permite pilotar a CB à venda (e que ainda continua disponível). Parado no cruzamento, pude vê-la estacionada na calçada. E ao lado dela, quem diria? Uma Virago 250. Ambas olhando pra rua e, cinicamente, acenaram para mim. Que desaforo, só pode ser provocação. Rimos, meu carro e eu, da ironia do momento e dessa vontade estúpida, indigna da minha cautela e dos meus receios. Desaforo maior foi incomodar o rei com uma questão pequena. Não voltará a acontecer de todo modo. Abriu o farol.


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Comentários

Uma resposta para “As motos, o mecânico-favorito e o fim de uma vontade”

  1. Avatar de Herbert Henso Montenegro
    Herbert Henso Montenegro

    A jornada revigora o espírito, enriquece a mente, semeia a prudência, deixa rastros de sabedoria e através do exemplo arrasta multidão. O destino por sua vez motiva, entusiasma, alegra mas jamais pode perpetuar-se, pois deve mudar mediante experiências adquiridas na jornada. Enfim a maturidade.
    Obrigado pela excelente escolha, tanto pra ti quanto para ela (CB).

    Saudações.

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